A imagem de um rapaz, sentado numa cadeira, sob uma tenda, falando calmamente diante de uma multidão e, depois de um estampido, se curva para a esquerda e cai, me causou uma impressão profunda. A legenda dizia que o rapaz que, descobri, tem a idade do meu filho mais velho, era Charlie Kirk, militante de ultradireita americana. O que eu senti depois, foi uma sensação de profunda tristeza. Profunda tristeza. O tiro tinha sido longo, o sniper tinha fugido e eu pensei que era um trabalho de um profissional. Foi um estampido só. Quem tinha dado esse tiro? Quem estaria por trás desse atentado político?
A minha tristeza veio da sensação de estarmos sentados sobre uma bomba, e o tic tac está gotejando diante de nossos olhos. Um rapaz de trinta e um anos, pai de um casal de filhos, tombou enquanto respondia uma pergunta e participava de um debate na sua turnê pelo país, na tentativa de levantar sua voz conservadora a o que ele classificava como um domínio de ideologia de esquerda nas universidades. Eu não diria que ele era amado e odiado na mesma medida. Não. O ódio por sua pessoa e o que ele representava era muito mais potente que o amor. Até porque o ódio era a sua ferramenta de discurso político.
Vozes da Direita e da Esquerda se elevaram. Donald Trump proclamou que o assassinato vinha dos seus adversários Democratas. A bomba continua tiquetaqueando. Um atentado estúpido, um estúpido na Casa Branca colocando lenha na fogueira do ódio.
E eu pensando que aquele atentado tinha sido cometido por um sniper experiente, de elite. Uma conspiração para desestabilizar a opinião pública e desviar atenção dos escândalos quase diários do governo americano. Estava enganado. Nas horas seguintes, apareceu o atirador: um garoto de vinte e dois anos, que deixou seu rifle com inscrições do tipo: “Segura essa, fascista!”; “Se você está lendo isso, é porque é gay” e inscrições cifradas que, depois alguém me esclareceu, eram sinais e formas de comunicação de gamers. Então foi assim a progressão do assunto: começamos com um sniper e terminamos com um gamer, que foi entregue às autoridades por iniciativa de seu pai, uma atitude impressionante e correta no meio desse festim de imbecilidades. Tyler Robinson é de uma família de classe média, religiosa, e manifestou seu pouco apreço pelo homem que iria matar num jantar de família. Mas não tinha nenhum antecedente como assassino ou terrorista. Um garoto comum, desses na casa ao lado.
As ironias inevitáveis: Charlie Kirk foi morto num tiro de cem jardas, que só foi possível pela possibilidade de comprar um rifle de precisão no supermercado. Charlie Kirk defendia o uso de armas e o seu fácil acesso mesmo se isso “custasse algumas vidas”. Custou a vida do pai de seus filhos. A política de escalar e viralizar no mundo digital pela multiplicação da divisão e do ódio encontrou um jovem de miolo mole que respondeu ao ódio com um tiro. O ditado da minha avó, de “quem semeia vento colhe tempestade” nunca foi tão concreto. Mas a minha pior tristeza é sobre nosso mundo: vivemos uma vida paralela no virtual, onde você pode afrontar, odiar, ameaçar e jogar online matando e destruindo pessoas. E temos outro mundo, o Real, onde temos que respeitar as pessoas, ouvir seus argumentos, encontrar soluções para as diferenças. O tiro que matou aquele rapaz foi um tiro de game online explodindo na vida real, e as inscrições na arma e na munição, era de mensagens cifradas entre participantes do jogo. É como uma sociedade subterrânea, com códigos próprios e necessidade de causar impressão e ganhar respeito de outros jogadores, “matando um fascista” sem nem saber o que é um fascista.
Levantar a voz e pedir para trazer essas pessoas para dentro da realidade parece uma coisa de um tiozão de outro século. Parece coisa de um psiquiatra que não entende que a tal da Realidade não existe mais, só temos uma superposição de Para-Realidades que multiplicam zumbis virtuais. Talvez seja a hora dos tios, pais, educadores e terapeutas levantarem a sua voz, contra essa droga, cada vez mais abusada e traficada livremente, que é o ódio.
O ódio é uma droga que dá ao odiador a sensação de poder e de invulnerabilidade. E basta um tiro longo para nos devolver duas coisas: nossa Realidade suja e nossa imensa fragilidade humana.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”