O Inmetro, instituição que deveria zelar pela lisura e imparcialidade, chancelou uma portaria que, na prática, concede um monopólio inaceitável para a Sicpa, uma empresa suíça, fornecedora de tintas de segurança, que já foi condenada no Brasil num passado recente por corromper agentes públicos envolvidos com a Casa da Moeda e tem um longo histórico de investigação em outros países pelas mesmas práticas.
A Portaria Inmetro nº 314/2025, de 29 de maio de 2025, longe de oferecer grandes inovações no combate a fraudes em selos do Inmetro – como vinha sendo anunciada - pavimentou o caminho para o monopólio de um fornecedor privado, beneficiando diretamente a Sicpa que se utiliza da Casa da Moeda como “laranja” para fornecer com exclusividade seus produtos aos mercados regulamentados pelo Inmetro encarecendo em 240% os valores antes praticados no fornecimento dos selos.
A parceria que leva o nome de Plataforma INMETRO DIGITAL 4.0, e perante o mercado é conhecida como Inmetro na Palma da Mão, tem sido costurada desde março de 2018 entre a Sicpa e a Casa da Moeda, prevendo a “exploração conjunta de oportunidades concretas de negócios e projetos com aplicação de soluções tecnológicas de rastreamento seguro, que podem envolver os mercados de bebidas em geral, cigarros, autopeças, azeite, combustível, alimentos, materiais bélicos, ativos financeiros, jogos de aposta e outros”, como o próprio termo prevê, com potencial de bilhões em faturamento de selos. No entanto, na prática tornou a Casa da Moeda uma empresa “laranja” da Sicpa, para impor aos mercados regulados pelo Inmetro selos e etiquetas com insumos patenteados e fornecidos exclusivamente pela empresa suíça.
Ficha corrida dos envolvidos
- SICPA AMÉRICA DO SUL INDÚSTRIA S.A: o braço latino da empresa suíça é o elo mais sombrio e grande operador da corrente. Ela já firmou em 07/06/21 um acordo de leniência no Brasil, por pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos entre 2009 e 2015, em outro caso envolvendo a Casa da Moeda. No acordo, a Sicpa e a Ceptis (que pertencem ao mesmo braço econômico), se comprometeram a devolver R$ 762 milhões aos cofres públicos, a serem integralmente destinados à União e à Casa da Moeda. A Operação Vícios da Polícia Federal, um desdobramento da Lava Jato, apontou pagamento de propina a um auditor fiscal da Receita Federal para que ele direcionasse um contrato bilionário da Casa da Moeda em 2008, de modo a favorecer as empresas condenadas. O contrato em questão se refere ao SICOBE, sistema de rastreamento de bebidas da Receita Federal, instalado e operado pela Sicpa sem licitação, e suspenso pela Receita Federal após as denúncias de corrupção. Em 2023 houve uma tentativa de retomada do SICOBE, mas a Receita Federal, que é contra o religamento, recorreu a AGU.
A SICPA também já foi condenada pelas autoridades suíças, seu país de origem, a pagar uma multa de U$ 90,6 milhões por pagamento de propinas em diversos países e teve seu gerente comercial condenado a 170 dias de prisão. Além disso, é investigada em cerca de 14 países por corrupção e lavagem de dinheiro, sempre com o mesmo Modus Operandis.
Seu atual presidente no Brasil, Bruno Catsiamakis Queiroga, é o mesmo que assina este nefasto acordo e já admitiu ter sido testemunha em outros contratos suspeitos na Lava Jato. É também membro do Conselhão do atual Governo Federal (Vide reportagens com respectivos links no anexo3).
- Casa da Moeda do Brasil (CMB): a empresa pública tem um longo histórico de relações comerciais com a Sicpa, que é sua principal fornecedora das tintas impressas no dinheiro. Em 2021 recebeu parte dos R$ 762 milhões do acordo de leniência assinado pela Sicpa. Mesmo com um passado recente escandaloso e envolto em casos de corrupção, a CMB decidiu dobrar a aposta e continuar a parceria com a empresa suíça em outros projetos suspeitos, como esse do Inmetro.
Pelo novo acordo, a CMB deveria ser a gráfica exclusiva responsável pela produção dos selos de conformidade do Inmetro, criando um monopólio inconstitucional imposto ao mercado por portaria. No entanto, a própria CMB optou por recebê-los prontos pela Sicpa, que terceiriza a produção em gráficas no exterior, pois não tem gráfica própria no Brasil. O acordo também prevê a troca de tecnologias entre as duas empresas, mas na prática a segurança dos selos está concentrada em tintas exclusivas e com patentes mundiais da Sicpa, sem qualquer ganho tecnológico para a CMB. Apesar do Termo de Parceria ressaltar o know-how da CMB em impressão e controle de documentos de segurança, nesse processo ela atua como uma simples chanceladora e distribuidora de um produto pronto feito por gráfica terceira, utilizando o nome da instituição como escudo para proteger uma empresa privada contra eventuais ataques dos mercados atingidos. (Vide Instrumento-particular-de-parceria-comercial-com-cooperação-tecnológica-e-outras-avenças.pdf – anexo2)
- Inmetro: a autarquia vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio, que deveria ser o pilar da metrologia e da qualidade no país, agora se vê no centro de um escândalo. A Portaria nº 314/2025 é o instrumento legal que, assinado por Marcio André Oliveira Brito, seu presidente, impôs um monopólio inconstitucional e favorece uma empresa privada, com longo histórico de corrupção. O Inmetro, um órgão notoriamente técnico, avalizou a especificação dos selos que incluiu as tintas patenteadas e exclusivas da Sicpa. Além disso, flexibilizou o controle de rastreabilidade dos selos ao permitir que fossem produzidos sem sequencial e as empresas que os utilizam não serem mais obrigadas a preencher os documentos onde relacionam os selos utilizados, tudo feito de forma a adaptar o processo que já existia a um produto entregue com especificações falhas.
O processo de implantação do projeto Inmetro na Palma da Mão também foi conduzido de forma, no mínimo, suspeita e não atendendo a critérios básicos de legalidade, impessoalidade e publicidade.
A consulta pública na plataforma “Participa + Brasil”, onde a minuta da portaria 314/2025 foi publicada para contribuições, recebeu mais de 1015 questionamentos de centenas de representantes dos mercados atingidos, a maioria contra a instituição do monopólio da CMB. No entanto, todos foram sumariamente ignorados, pois a portaria oficial foi publicada sem praticamente nenhum ajuste ou alteração em seus itens, incluindo as tintas patenteadas da Sicpa.
A portaria foi publicada no dia 30/05/25 com vigência imediata para compra dos selos, fornecidos exclusivamente pela CMB. No mesmo dia, as gráficas que forneciam os selos e mantinham estoques de segurança do material pronto, assim como matérias-primas e insumos, foram proibidas de continuar atendendo o mercado, sendo que a própria CMB não estava em condições de atender a demanda imediata, com seu portal de compras fora do ar, extrema morosidade no envio de orçamentos (semanas), sem preço definido para os selos, e demora na entrega do material. Outro ponto que chama a atenção é que, o Termo de Parceria entre Sicpa e CMB foi assinado no dia 27/05/25, somente três dias antes da publicação da Portaria no DO. Os prazos entre a assinatura do Termo, a publicação da portaria e sua vigência, demonstram uma urgência extremamente incomum para um processo de tanto impacto público e mercadológico.
Instituição do monopólio
A cronologia dos fatos desenha um cenário de planejamento minucioso para a criação de monopólio que favoreça a Sicpa através do seu laranja - CMB, para atuar em mercados regulamentados ou ainda não regulamentados:
· Em 08 de março de 2018, foi firmado um Termo de Parceria entre a CMB e a SICPA, para a “exploração conjunta de oportunidades concretas de negócios e projetos com aplicação de soluções tecnológicas de rastreamento seguro, que podem envolver os mercados de bebidas em geral, cigarros, autopeças, azeite, combustível, alimentos, materiais bélicos, ativos financeiros, jogos de aposta e outros”.
· Em junho de 2023, o diretor presidente da Sicpa, Bruno Queiroga, no Relatório Ceptis de Sustentabilidade 2022, cita como um grande avanço do ano de 2022 o projeto de regulamentação e conformidade dos produtos junto ao Inmetro e a Casa da Moeda, onde se preparam para “gerar um dos maiores e mais inovadores projetos de controle produção do mundo”, em suas palavras.
· Em 11 de dezembro de 2023, Sicpa e CMB assinam um Protocolo de Intenções para o desenvolvimento e a operação do Modulo 1 da Plataforma INMETRO DIGITAL 4.0 (doravante “Vigilância Digital”), o que viria a ser o embrião do INMETRO NA PALMA DA MÃO, da portaria 314/2025. O projeto é citado como fruto da prospecção comercial da parceria CMB-SICPA, o que corrobora o envolvimento da empresa suíça desde seu início.
· Em 04 de julho de 2024, o Inmetro e a Casa da Moeda assinam um Acordo de Cooperação Técnica em Xerém/RJ, sede do Inmetro, para lançamento do projeto “Inmetro na Palma da Mão”. Durante a cerimônia de lançamento, o então diretor de Inovação e Mercado da Casa da Moeda, Leonardo Abdias, citou as inovações tecnológicas presentes no selo como “polarização com uso de filtro, a utilização de tintas de segurança especiais com variação óptica e a tecnologia de autenticação forense”, todas tecnologias de tintas fornecidas exclusivamente pela Sicpa, que curiosamente não é citada ou apresentada na cerimônia, mesmo sendo parceira da CMB no projeto. Além disso, Abdias ressalta o “controle total da produção de selos pela Casa da Moeda”, o que posteriormente foi descoberto que não ocorre.
· Em 05 de março de 2025, o Inmetro publica no portal Participa + Brasil, consulta pública com a minuta da portaria 314/2025, com abertura no dia 05/03/25 e encerramento no dia 21/03/25. Nenhuma das 1015 contribuições foram analisadas ou respondidas aos interessados.
· Em 27 de maio de 2025, Sicpa e CMB assinam o INSTRUMENTO PARTICULAR DE PARCERIA COMERCIAL COM COOPERAÇÃO TECNOLÓGICA E OUTRAS AVENÇAS. Apesar de, perante o mercado, a CMB ser anunciada oficialmente como a única responsável pela produção e fornecimento dos selos, o contrato prevê a exploração mútua da Plataforma INMETRO DIGITAL 4.0 por ambas, e contém clausulas que impedem a livre escolha de parceiros tecnológicos pela CMB sem o consentimento da Sicpa, o que inclui o fornecimento das tintas visto se tratar dos itens principais dos selos.
· Em 30 de maio de 2025, a portaria 314/2025 é publicada no DO exatamente com a mesma forma e conteúdo da minuta, concedendo monopólio de venda dos selos a CMB, na figura de laranja da Sicpa, e mantendo as especificações das tintas patenteadas pela Sicpa.
Conflito de interesse e ilegalidades
As bases deste arranjo são podres, permeadas por ilegalidades e desrespeito aos princípios da Administração Pública, de livre mercado e concorrência democrática.
- Tintas patenteadas e exclusivas da Sicpa:
A Portaria 314/2025 impõe como item de segurança dos selos o uso da “tinta opticamente variável polarizável na forma do mapa do Brasil”, no item 2.5.b). Essa tinta, no mercado de impressão de segurança, tem o nome comercial de Sicpa Oasis® e é fornecida exclusivamente pela Sicpa em nível mundial, pois detêm sua patente.
Também exige no item 2.5.a) “Elemento visível impresso que traz o logo do INMETRO ao olhar diretamente e ‘INMETRO’ ao olhar angulado em 45 graus”, efeito que é conseguido com outra tinta exclusiva da Sicpa que tem o nome comercial de Sicpa Quazar®”.
A imposição dessas tintas nas especificações dos selos demonstra um claro favorecimento e direcionamento do contrato para a Sicpa, que esteve envolvida no projeto desde o início e assim pode trabalhar a especificação técnica da forma que melhor lhe conviesse. Mesmo que a CMB vier a imprimir os selos, ficará dependente e a mercê dos preços impostos pela Sicpa para continuar a fornecer as tintas, que são basicamente os únicos itens de segurança presentes nos selos. Também não poderá desenvolver outros fornecedores de tintas, mesmo mudando a especificação, pois no contrato de parceria está estipulado, em seu item 9.11, que nenhuma das partes poderá explorar individualmente o projeto com terceiros pelo prazo de 20 anos “salvo mediante licenciamento e pagamento a outra Parte pelo direito de uso”.
O contrato de parceria também discorre em suas cláusulas 9.8 e 9.10 sobre os direitos de propriedade intelectual do projeto. Basicamente, o que se percebe é que não há qualquer ganho tecnológico para a CMB, visto que ela está simplesmente distribuindo um produto pronto e acabado fornecido pela Sicpa. Além disso, a “tecnologia” empregada nos selos se resume as tintas patenteadas da Sicpa, que continuará detendo suas propriedades intelectuais mesmo após o fim do projeto.
- Monopólio indevido e inconstitucional da Casa da Moeda:
A CMB não tem monopólio nem para produção da nossa moeda nacional, recentemente em abril de 2024, o Plenário do STF validou uma lei federal que autoriza o Banco Central a contratar fornecedor estrangeiro para fabricação de papel-moeda e moeda metálica, a fim de abastecer o meio circulante nacional. A decisão se deu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6936. O entendimento da Corte foi de que a Constituição Federal não atribuiu diretamente à Casa da Moeda do Brasil a exclusividade dessa função, o que ratifica que a CMB não tem sequer monopólio para impressão do dinheiro, que dirá para a impressão de Selos de Conformidade do Inmetro.